A garagem proverbial
Em várias histórias sobre empreendedorismo contadas em qualquer lugar, seja a inventores experientes, seja a makers novatos, é possível observar um elemento em comum na qual todas as épicas jornadas de jovens Gates, Jobs e Musks começam: a garagem. A garagem proverbial, o lugar onde tudo começou. Um lugar envolto em mistério e magia, onde horas se transformam em dias, e dias em meses, na busca - quase sempre iterativa - de aperfeiçoar a idéia inovadora, o primeiro produto, e que faz de seus criadores novos mitos quando bem sucedidos.
Lá se pode encontrar todo tipo de ferramentas, algumas conquistadas com o suor do rosto, outras doadas, herdadas, bem como sucatas eletrônicas e mecânicas de toda sorte. À esquerda, um motor antigo de máquina de lavar roupas ainda em bom estado. À direita, uma velha televisão de tubo aberta, cujas entranhas foram meticulosamente vasculhadas à procura de peças. No centro está a bancada, onde tudo é testado, verificado e construído, banhada pela luz esverdeada das lâmpadas fluorescentes que estão logo acima da superfície de trabalho. Não sei se o leitor é do tipo organizado ou bagunceiro, mas aqui também há margem para contradições e discussões acaloradas: os transístores, capacitores e resistores separados e categorizados com esmero, dentro de seus respectivos lugares no caro gaveteiro, enquanto os parafusos e porcas se multiplicam por toda a bancada. Não é raro que passemos preciosos minutos procurando por alguns deles, que caem e rolam para os cantos mais escuros e inacessíveis do cômodo. Toda esta coleção de aço, alumínio e cobre é a matéria-prima do começo de um sonho e o indício de uma metamorfose iminente.
Hoje, este lugar mítico cedeu seu espaço no imaginário de todo novo empreendedor ao quarto, à mesa de centro da sala de estar, à cozinha, ou a um café ou lanchonete com Wi-Fi. Afinal de contas, não são todos que ainda podem se dar o privilégio de ter uma garagem. Outros projetos podem nem ocupar alguns metros quadrados de chão, e sim alguns megabytes em um data center qualquer em algum lugar do mundo. O que realmente importa, porém, é que o espírito da garagem permanece o mesmo e muito vivo por sinal. Devo confessar que ainda bem que tive a oportunidade de estar em várias dessas garagens. Todas elas tiveram um papel decisivo na minha formação, porque elas proviram o que nenhum banco de faculdade pode: o fazer no mundo real, e no mundo real há limites.
Suponhamos que se queira construir um aparelho eletrônico. Há limites para o seu tamanho e peso se quisermos que ele seja portátil. Senão, devemos criar uma forma de desmontá-lo e remontá-lo de uma forma lógica e factível. Há limites para quais materiais podemos empregar, em quanto tempo podemos construir, nossos bolsos, o próprio mercado, nossos possíveis clientes, e até os limites de nossos próprios corpos.
Aviso ao leitor para que não se engane, pois o que acabei de fazer não é uma reclamação. Todos esses limites são bons e necessários. Eles funcionam como uma forja de ferreiro para as idéias, que entram como pedaços de ferro amorfos e saem como espadas de aço afiadas. Para isso, é necessário adicionar carvão ao ferro, aquecê-lo nas brasas, e martelá-lo sobre a bigorna várias vezes até que ele adquira a forma desejada. Assim também acontece com as idéias e seus criadores, moldados pelos limites do mundo real, sendo forjados dentro de suas garagens.
Lembro-me de uma vez que assisti a um vídeo com um título inspirador: "Como ser o seu próprio herói" (em inglês, How to be your own hero). Entre sucessos e insucessos ao entrar e sair das diversas garagens, muitos como eu não se tornaram messias corporativos que transformaram suas histórias do começo na garagem em um novo mito de criação. Entretanto, as garagens fizeram de todos heróis de nós mesmos. Uns ganharam sabedoria, outros o conhecimento que lhes faltava, outros ainda ganharam uma profissão. Ganhamos todos a confiança em nós mesmos. A confiança de que podemos criar algo concreto por nós mesmos, do começo ao fim.
No final, a garagem mítica fez mitos de todos nós.